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Entre jacarés, macacos e guarás-vermelhos, porto de Santos planeja hidrogênio verde


São cerca de 15 minutos para o bonde construído na década de 1930 percorrer 7,5 km até a sede da usina. É o tempo usado pelos funcionários para falar sobre os animais que viram no trajeto nas semanas anteriores.

 

"E o macaco?"

 

"Estava aqui semana passada."

 

"Viu a anta?"

 

"Vi, mas já faz tempo."

 

Em uma viagem para o início do século 20, o porto de Santos quer encontrar o seu futuro.

 

"Somos o único porto autossustentável do mundo", afirma o presidente da Autoridade Portuária, Anderson Pomini, 43.

 

Ele se refere à Usina Hidrelétrica de Itatinga, em Bertioga, no litoral de São Paulo, construída para fornecer a energia necessária ao porto, que está a 30 quilômetros de distância. O plano agora é, em 2025, publicar edital em busca de interessados em fazer a transição da área para a produção de hidrogênio verde. A concessão será, segundo Pomini, por pelo menos 25 anos.

 

"Porto é uma área estratégica para fabricação e produção de hidrogênio, principalmente para exportação. Alimentar este porto com energia renovável faz com que aconteça a descarbonização local e pode até mesmo usar amônia como combustível mais sustentável para navios", diz Drielli Peyerl, pesquisadora sênior da Universidade de Amsterdã, na Holanda. Ela é especialista em transição energética, desenvolvimento sustentável, hidrogênio verde e mercado de carbono.

 

Após convocação aberta pela Autoridade Portuária, duas empresas preparam estudos sobre a viabilidade e a melhor maneira de fazer a transição de Itatinga para o hidrogênio verde. Será preciso fazer um mix, segundo especialistas, com outras fontes de energia sustentável, como eólica, solar ou até mesmo hidrelétrica.

 

Hidrogênio verde é um combustível limpo e que não emite carbono durante sua produção. É obtido por meio de um processo químico denominado eletrólise. O hidrogênio do oxigênio presente na água é separado, utilizando assim a corrente elétrica. Trata-se de tecnologia bem mais cara do que a energia convencional, e essa é uma preocupação no projeto.

 

A produção do quilo do hidrogênio custa cerca de US$ 2 (R$ 10,9 pela cotação atual), enquanto o hidrogênio verde pretendido para Itatinga está em cerca de US$ 5,50 (R$ 29,9).

 

A visão de especialistas como Drielli é que há tanto interesse no tema e a quantidade de pesquisas realizadas é tão grande que o barateamento é questão de tempo. A empresa americana de consultoria McKinsey & Company estima que o Brasil vá receber US$ 200 bilhões (R$ 1,08 trilhão) em projetos de hidrogênio verde nos próximos 20 anos.

 

"A gente precisa descobrir algumas coisas. Há demanda? Qual é o mercado? Quem vai comprar? Temos de entender isso antes de tudo", analisa Rafael Apolinário dos Santos, 33, gerente de utilidades da Autoridade Portuária. Ele considera a possibilidade de exportação como amônia, substância que depois pode ser convertida novamente em hidrogênio.

 

A ideia de Pomini passa por um processo de revitalização da vila de Itatinga, que pertence ao município de Bertioga. Projeta investimentos de R$ 500 milhões na transição para hidrogênio verde, o que pode descarbonizar o porto de Santos e aumentar a participação da usina no fornecimento de energia do complexo. A produção está em quase metade da capacidade.

 

São 15 megawatts por hora. O presidente vê possibilidade de chegar a 29. Com a energia limpa, crê que todo o porto possa ser abarcado pelo serviço oferecido por Itatinga. Apolinário calcula que, para isso, seriam necessários cerca de 100 megawatts.

 

Com seu equipamento preservado desde a inauguração, em 1910, a usina possui cinco geradores que fornecem energia elétrica hoje em dia para seis terminais. Poderia atender mais empresas. Isso não acontece, de acordo com Pomini, por uma escolha federal durante o governo Jair Bolsonaro (2019-2022). A prioridade na época era preparar a Autoridade Portuária para uma privatização que não veio.

 

A empresa avisou aos terminais para não contarem com a energia de Itatinga. Deveriam buscar alternativas. Foi o que eles fizeram. A prioridade da agência administradora do porto era fazer caixa para se tornar atrativa a compradores. Juntou mais de R$ 2 bilhões.

 

Até o início do projeto de privatização, a usina dava lucro de R$ 50 milhões por ano. Com a perda de terminais como clientes, se tornou deficitária em R$ 8 milhões a cada 12 meses.

 

Manter ou não a administração estatal era discussão em que a realidade de Rodolfo dos Santos Neto, 45, não fazia diferença. Técnico portuário, ele é, de fato, o administrador de Itatinga e da usina há 13 anos, em um ciclo que se fecha em sua vida.

 

Seu bisavô, José Neto Filho, chegou em 1908 para ajudar na construção. O avô, José Neto, trabalhou no local, e o pai, Bertacínio Neto, nasceu em Itatinga.

 

Rodolfo estudou na escola da vila, a primeira inaugurada em Bertioga, em 1918. Foi batizado na Igreja Imaculada Conceição, erguida em 1942, com suas peças, vitrais e mobiliário trazidos da Inglaterra e ainda preservados. Os vastos campos verdes com 61 casas de operários (quase todas hoje vazias) eram, como define, seu parque de diversões.

 

"Minha infância foi em Itatinga. Tinha médico, dentista, cinema, mercearia, padaria, clube, igreja. Trabalhar aqui é um ciclo que se fecha", lembra, apontando para o campo de futebol com modesta arquibancada de madeira estilo inglês, ao lado de uma sala de troféus de torneios entre funcionários.

 

Ter usina própria foi uma ideia de Eduardo Guinle e Cândido Gaffrée, então principais concessionários do porto de Santos por meio da Companhia Docas do Estado de São Paulo. Foi comprada a Fazenda Pelaes, em Bertioga, aos pés da Serra do Mar. A construção começou em 1906, e a inauguração aconteceu em 10 de outubro de 1910.

 

Muito do que foi construído naqueles primeiros anos continua por lá. Isso faz com que a Autoridade Portuária veja também um potencial turístico. Em parceria com a Prefeitura de Bertioga, foi aberta visitação aos sábados e domingos —40 pessoas a cada dia. O local estava fechado desde 2012, quando 12 pessoas apresentaram sintomas de malária.

 

Até 1927, havia excedente de produção da usina hidrelétrica. O que sobrava era usado para iluminação pública em Santos e São Vicente.

 

"Itatinga chegou a fornecer energia para a capital", afirma Apolinário.

 

Ele diz que já houve interesse de empresas em assumir a usina e produzir energia limpa, mas o trabalho de manutenção teria de ficar sob responsabilidade da Autoridade Portuária. Isso seria inviável, de acordo com o órgão.

 

Chegar de carro é impossível. Se for desde Bertioga, é preciso um pequeno barco por causa da curta distância. Com a saída de Santos, se faz necessária uma lancha com piloto que conheça a região por causa das diferentes profundidades do canal. Um trajeto de quase uma hora acompanhado por revoadas de guarás-vermelhos, vizinho a manguezais e com praias próximas frequentadas por milionários. Como a de São Pedro, por exemplo, usada como descanso por alguns dias pelo ex-Beatle Paul McCartney no ano passado.

 

A transição para o hidrogênio verde é vista também como um chamariz para o ecoturismo na região.

 

Isso, na verdade, pode ser um problema porque o processo inicial da produção de hidrogênio verde exige uma água muito limpa. "A gente vê que há processos de inovação trazendo caminhos para a utilização de uma água não tão limpa", afirma Drielli.

 

Rodolfo e os 20 funcionários atuais da usina se preocupam com o futuro da usina, mas ainda estão alheios a essa discussão.

 

"No caminho para cá tem onça-parda e jacaré-do-papo-amarelo", ressaltam. "Vocês viram?"

















Fonte: Folha de S. Paulo

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